13 fev

O TERMO INICIAL DA FRAUDE À EXECUÇÃO NOS CASOS DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Postado por admin Em Artigos

* Daiane Rigatti

 O Código de Processo Civil atual passou a vigorar em 18 de março de 2016, por ocasião da promulgação da Lei 13.105/2015.

Entre as novidades trazidas pelo novel diploma está o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que, agora, passa a ter mecanismos para sua efetivação.

Necessário observar que o Código de Processo Civil de 2015 não regulou as hipóteses de desconsideração, tarefa que permanece a cargo de outras leis.

A intenção do legislador ao regularizar a matéria foi a de garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório para aquele terceiro que se pretende responsabilizar – o sócio, na desconsideração tradicional, a pessoa jurídica, na desconsideração inversa.

De fato, ao ler os artigos 133 a 137, a impressão que fica é que foram respeitados os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

Impressão esta que permanece tão somente até conhecermos do artigo 792, § 3º, do Código de Processo Civil.

O que fez o legislador?

Elaborou um dispositivo que prevê como termo inicial da fraude à execução, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a “citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar”. A saber.

Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

[…]

§ 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

Lembrando que a personalidade que se pretende desconsiderar é a pessoa jurídica na desconsideração tradicional e o sócio na desconsideração inversa.

Pois bem. A fim de verificarmos com clareza os efeitos da aplicação literal do dispositivo supracitado, vamos considerar um caso hipotético de desconsideração tradicional.

João ingressa com ação de conhecimento em face de Empresa ABC, sobrevindo sentença de total procedência dos pedidos efetuados por aquele. A decisão transita em julgado. É requerido o cumprimento da sentença. Até aqui, decorreram 10 anos.

O valor da dívida fica a cargo da imaginação.

João decide pleitear a desconsideração da personalidade jurídica de Empresa ABC, a fim de que o patrimônio do sócio Paulo seja atingido, garantindo, pois, a quitação da dívida.

O incidente é instaurado. Paulo é citado e apresenta defesa. Não há mais provas a produzir. O pedido de desconsideração da personalidade jurídica de Empresa ABC é acolhido pelo juiz.

Com o julgamento de procedência, todos os atos de alienação realizados pelo sócio Paulo, desde a citação de Empresa ABC, podem ser considerados havidos em fraude à execução. Ou seja, para João, os bens alienados continuam sendo de Paulo, por isso, passíveis de penhora.

Desde a citação de Empresa ABC até o acolhimento do pedido de desconsideração transcorreram 12 anos.

Assim, pela literalidade do artigo 792, § 3º, do Código de Processo Civil, o qual determina que o termo inicial da fraude à execução é a data da citação de Empresa ABC, todos os negócios realizados por Paulo nestes últimos 12 anos serão considerados ineficazes para João, cabendo aos terceiros adquirentes comprovarem a boa-fé quando da aquisição, sob pena de perderem o bem.

Tarefa que era árdua na vigência do Código de Processo Civil de 1973 e ficou ainda mais prolixa com a promulgação da Lei 13.105/2015.

Conforme o artigo 792, §2º, do Código de Processo Civil, “no caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”.

Assim, para demonstrar a sua boa-fé, o terceiro precisará comprovar que realizou todas as consultas possíveis em nome de Paulo e, também, das empresas que este era sócio, antes da aquisição do bem. Consultas estas que não se restringem a uma mera busca na internet, mas em uma vasta investigação junto a diferentes órgãos e cartórios, de distintas comarcas e regiões, cuja falta de unicidade nem se comenta.

Por derradeiro, meus caros, João conseguiu, com o auxílio pouco constitucional do Código de Processo Civil, receber seu crédito.

De fato, é bastante ofensivo às garantias processuais e constitucionais reputar-se que a citação da devedora principal seria o marco para a fraude à execução da pessoa cuja personalidade se pretenda ver desconsiderada, uma vez que tal termo retroagiria a um momento em que o sócio atingido pela desconsideração ainda não era parte de processo nenhum e, consequentemente, não respondia por dívida alguma.

Para preservação da segurança, a regra precisaria ser interpretada em conformidade com a Constituição e com os princípios que norteiam o Código de Processo Civil de 2015, de maneira a proteger não somente a efetividade da tutela executória, como também os direitos fundamentais de terceiros.

Em outros termos, a regra não poderia ser interpretada na sua literalidade! O que aparenta ser inadmissível, já que estamos diante de uma lei nova, há pouco instituída, que teve tempo de ser revisada e devidamente formatada, beirando ao contrassenso cogitarmos que será em juízo que o dispositivo em apreço receberá uma “redação coerente”.

Não obstante, para garantir-se a segurança das relações negociais é fundamental que se estabeleça outro termo inicial para a fraude à execução nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, que não aquele erroneamente instaurado pelo legislador no artigo 792, § 3º, do Código de Processo Civil de 2015.

A doutrina já se manifestou acerca do tema, porém, o entendimento não é uniforme:

O autor Flávio Luiz Yarshell (2015, p. 249) assim leciona:

Parece ser temerário dizer que desde a citação da sociedade as alienações de bens pelos sócios estariam sujeitas à fraude de execução. Se a desconsideração for requerida apenas na fase de cumprimento, é bem possível que, entre a data da citação do réu (devedor) e a data da citação do terceiro (responsável) tenham decorrido anos. Se, durante esse tempo, sócios tiverem alienado patrimônio, não se afigura razoável que a eficácia da desconsideração ocorra de forma retroativa. Além disso, é preciso levar em conta que nem sempre a desconsideração será determinada com base na premissa de ter havido fraude ou confusão patrimonial.

Fazendo coro ao posicionamento acima, o autor André Pagani de Souza (2015, p. 236):

Assim, pela interpretação literal, se o sócio ou o administrador de determinada pessoa jurídica alienarem ou onerarem um bem particular deles, no curso de um processo movido exclusivamente contra a pessoa jurídica, pode haver risco de tal alienação ou oneração serem consideradas fraude de execução caso no futuro seja formulado um pedido de desconsideração da personalidade jurídica e ele seja acolhido (CPC/2015, art. 137). Esta interpretação literal do art. 792, § 3º, do CPC/2015, ao que tudo indica, prejudica os terceiros de boa-fé que não têm como verificar se aquele que aliena ou onera um bem é ou não é sócio ou administrador de uma pessoa jurídica, à míngua de um cadastro unificado das pessoas jurídicas em território nacional.

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery (2015, p. 1.203) assim se manifestaram:

A intenção do dispositivo é punir a conduta do sócio ou administrador que aliena bens no curso do incidente de desconsideração. Todavia, parece mais correto considerar que a ineficácia da alienação ou oneração de bens ocorrida nessa situação incida apenas caso ocorram após a citação do sócio ou administrador para responder aos termos do incidente, ou após algum fato que dê a entender que tais pessoas tinham ciência da instauração.

Deveras, o artigo 792, § 3º, do Código de Processo Civil de 2015 é uma infelicidade do legislador, que, ao dar uma redação defeituosa àquele, abriu uma amarga brecha para os profissionais do direito discutirem indefinidamente.

Isso porque, a defesa do João, no exemplo acima citado, será em prol da aplicação literal do dispositivo. Por outro lado, o terceiro que adquiriu o bem de Paulo há 10 anos, lutará em favor de uma interpretação diversa, de modo a fixar outro termo inicial para a fraude à execução.

Mesmo através de uma análise superficial, dá para se ter uma noção dos efeitos da irresponsabilidade do legislador.

Irresponsabilidade, pois ao entregar um dispositivo sem ponderar as consequências da sua aplicação literal, imputou para a máquina judiciária a responsabilidade de resolver a questão, ao ter que lidar com os inúmeros processos que nascerão exclusivamente para discutir o entrave.

Assim, caros leitores, o legislador não só criou os mecanismos para efetivar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, de modo a permitir ao sócio ou administrador promover defesa antes de ser cogitada a penhora de seus bens, como também gerou um “monstro jurídico” que causará discussões intermináveis e, porque não dizer, consequências desastrosas.

No atual momento do país, onde os indivíduos de forma uníssona clamam por seriedade, organização e segurança – e quando se fala em segurança é no sentido literal da palavra, de sentir-se protegido de riscos, perigos ou perdas –, é inaceitável que seja promulgada uma lei que institui potencial risco à segurança jurídica dos negócios e, consequentemente, colabora com a estagnação econômica do país.

Acaba por ser compreensível que empreendedores deixem de realizar determinados negócios por receios futuros, causados por uma legislação deficiente. Ora, se empresas deixam de contratar funcionários devido ao excesso de protecionismo da justiça trabalhista, parece coerente que empresários deixem de efetivar negócios no Brasil para fazê-los fora do país, já que aqui praticamente tudo se estabelece contra o empreendedor.

E, como fruto desta cultura negativa contra o empreendedor, temos de ora em diante o dispositivo 792, §3º, do Código de Processo Civil de 2015, que, juntamente a tantos outros, não colabora com o crescimento e perfectibilização dos negócios. Ao contrário, causa ainda mais desordem e insegurança no meio jurídico e econômico.

O que de fato não surpreende, mas decepciona, uma vez que, após o marketing realizado sobre o “novo Código de Processo Civil”, o qual sempre invocou a chegada de uma era de maior clareza, rapidez, qualidade e, portanto, justiça, o que se esperava era o mínimo: o advento de uma lei culturalmente moderna, que viesse não só para amenizar a austeridade do processo, mas, principalmente, para trabalhar de forma justa e coerente para a concretização dos direitos, e consequentemente, para o crescimento do país.

Assim, enquanto os Tribunais Pátrios não solucionarem o problema criado pelo legislador, a orientação é de que ao realizar contratos de compra e venda, o comprador procure profissional de sua confiança, que lhe auxiliará e lhe prestará as informações necessárias, com o intuito de se evitar questionamentos futuros quanto à validade do negócio realizado.

*Advogada na Bianchi Advocacia. Pós-graduanda em Direito Processo Civil pela Escola Superior da Magistratura Federal

 

 

 


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