02 abr

A negativa securitária baseada no preenchimento de questionário de avaliação de risco: uma análise da sua legalidade

Postado por admin Em Artigos

* Dra. Daiane Rigatti

Com o trânsito cada dia mais intenso, as estradas cada vez mais precárias e a criminalidade em constante crescente, a contratação do seguro automotivo acabou tornando-se uma obrigação ao proprietário brasileiro.

O que não sabe este, no entanto, é que o contrato de seguro não é, e nem nunca será, garantia de segurança e certeza.

Observa-se, ultimamente, um grande aumento nas negativas de cobertura securitárias, principalmente em decorrência de divergência de informações constantes no questionário de avaliação de risco.

Lembrando que o questionário de avaliação de risco, popularmente conhecido como “cláusula perfil”, faz parte integrante da proposta de seguro de veículo automotor e serve, basicamente, para a seguradora estipular o prêmio.

Ao menos, em tese.

No referido questionário, o segurado responde perguntas relacionadas ao principal condutor do veículo, tais como seu estado civil, idade, se possui garagem em casa e/ou no trabalho, qual a quilometragem média rodada pelo veículo, entre outras.

Pois bem, em sentido oposto ao da boa-fé, muitas seguradoras – se não todas – têm se utilizado do questionário de avaliação de risco para taxar o prêmio e, ainda, justificar negativas securitárias.

Vejamos alguns exemplos: (i) veículos furtados em via pública e a declaração do segurado de que possui garagem; (ii) veículo eventualmente conduzido por motorista de idade inferior à declarada pelo segurado; e (iii) declaração do segurado sobre a utilização do veículo a trabalho para visitar clientes.

Contudo, como mencionado, a cláusula perfil deve ser tida apenas como parâmetro na fixação do prêmio, não servindo de fundamento para a seguradora afastar sua obrigação de pagar o seguro.

Explica-se.

Inicialmente, insta observar que a relação estabelecida por meio de contrato de seguro é de consumo, se enquadrando as partes contratantes nos conceitos de consumidor e de fornecedor de serviços.

Desta forma, a interpretação das cláusulas contratuais deve ser feita com base nas disposições do Código de Defesa do Consumidor, especialmente naquelas que conferem proteção contratual ao consumidor, as quais, dentre outras, estabelecem que a interpretação deva ser a mais favorável a estes.

Cuidando-se, o caso, de um contrato de adesão, em que as condições são impostas unilateralmente pelo fornecedor, obstaculizando a liberdade de contratação do consumidor, deve ser assegurada à parte hipossuficiente a aplicação de mecanismos que garantam o equilíbrio na relação contratual.

Nessas circunstâncias, qualquer cláusula que implique limitação de direitos deve ser redigida com destaques, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

Nesse sentido, dispõe o art. 54, §§ 3º e 4º, do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

[…]

  • 3º Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.
  • 4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

E não fosse isso, cumpre consignar que a responsabilidade civil das seguradoras é objetiva, conforme ensina o jurista Sérgio Cavalieri Filho:

A responsabilidade objetiva do segurador muito se aproxima da responsabilidade fundada no risco integral, posto que, dadas as peculiaridades do contrato de seguro, a maioria das causas de exclusão de responsabilidade não se lhe aplica […]. Somente o fato exclusivo do segurado pode ser invocado como excludente de responsabilidade do segurador, mesmo assim quando se tratar de dolo ou má-fé. Para alguns, a culpa grave do segurado também excluiria a responsabilidade do segurador mas, em nosso entender, sem razão. A culpa, qualquer que seja sua gravidade, caracteriza-se pela involuntariedade, incerteza, produzindo sempre resultado não desejado. Ademais, é um dos principais riscos cobertos pela apólice. Quem faz seguro, normalmente, quer também se prevenir contra seus próprios descuidos eventuais. E, ao dar cobertura à culpa do segurado, não seria possível introduzir distinção entre os diversos graus ou modalidade de culpa. Além da dificuldade para se avaliar a gravidade da culpa, a limitação acabaria excluindo a maior parte dos riscos que o segurado deseja ver cobertos, tornando o seguro desinteressante. Entendo, assim, que a culpa do segurado, qualquer que seja o seu grau, não exonera de responsabilidade o segurador. (Programa de Responsabilidade Civil. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editora, 2003, p. 432-434) (grifou-se)

Dito isso, necessário asseverar que a chamada cláusula perfil, comumente prevista em contratos de seguro de veículo automotor, não tem sido aceita pela jurisprudência como fundamento suficiente a justificar a recusa no pagamento da indenização pela seguradora.

Este, inclusive, é o posicionamento do E. Superior Tribunal de Justiça:

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. CONTRATO DE SEGURO. QUESTIONÁRIO DE RISCO. DECLARAÇÕES INEXATAS OU OMISSAS FEITAS PELO SEGURADO. NEGATIVA DE COBERTURA SECURITÁRIA. DESCABIMENTO. INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO, DE AGRAVAMENTO DO RISCO E DE MÁ-FÉ DO SEGURADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA LIMITATIVA COM DUPLO SENTIDO. APLICAÇÃO DA SÚMULA 5. 1. […]. 2. As declarações inexatas ou omissões no questionário de risco em contrato de seguro de veículo automotor não autorizam, automaticamente, a perda da indenização securitária. É preciso que tais inexatidões ou omissões tenham acarretado concretamente o agravamento do risco contratado e decorram de ato intencional do segurado. Interpretação sistemática dos arts. 766, 768 e 769 do CC/02. 3. “No contrato de seguro, o juiz deve proceder com equilíbrio, atentando às circunstâncias reais, e não a probabilidades infundadas, quanto à agravação dos riscos” (Enunciado n. 374 da IV Jornada de Direito Civil do STJ). […] 7. Recurso especial não provido. (REsp 1.210.205/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, julg. em 01.09.11, publ. em 15.09.11) (grifou-se)

É que a chamada cláusula perfil jamais pode ser invocada para exonerar a seguradora da cobertura do sinistro, por colocar o segurado em exagerada desvantagem, ocasionando desequilíbrio contratual entre as partes.

Nesse sentido, o art. 51, §1º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

  • Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:

II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

Assim, eventual alteração do perfil autorizaria, casualmente, a seguradora a cobrar a diferença do prêmio, se existente, mas jamais a negar o pagamento da indenização devida.

É certo, por outro lado, que o ordenamento não privilegia a fraude, nem a má-fé, de sorte que, caso venha a ser comprovado que o segurado preencheu o questionário com informações sabidamente inverídicas, visando celebrar contrato mais vantajoso, é possível, com amparo no art. 766 do Código Civil, dar por resolvido o contrato, inclusive exigindo, mesmo após o sinistro, a diferença do prêmio. Contudo, o ônus de comprovar a má-fé do segurado é da seguradora, nos termos do art. 373, inciso II do novel Código de Processo Civil.

Ainda, cumpre explicitar que o agravamento do risco somente resta caracterizado em casos em que o segurado livre, voluntária e conscientemente busca o evento danoso, deliberadamente com o objetivo de receber o valor do prêmio do seguro contratado entre as partes.

Preceitua o art. 768 do Código Civil: “O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco do contrato”.

Assim, por exemplo, existindo cláusula expressa e em destaque para afastar a cobertura para condutores na faixa etária dos 18 anos aos 25 anos, e ocorrendo de o veículo segurado envolver-se em um sinistro, quando terceiro menor de 26 anos conduzia o bem, por força do contrato, a seguradora continua possuindo a obrigação de efetuar o pagamento da indenização.

Isto porque não se pode excluir o dever de indenizar de forma genérica e automática. A seguradora precisa comprovar a ocorrência de dolo ou má-fé no agir do segurado, ao preencher o questionário de avaliação de risco, bem como que este tenha prestado declarações falsas a fim de reduzir o valor do prêmio a ser pago, consequentemente, ocasionando o agravamento do risco contratado.

Do contrário, não há que se falar em má-fé do segurado, seja no ato da contratação, seja posteriormente, pois a omissão dolosa não pode ser presumida tão somente porque o consumidor/segurado não contratou a cobertura para sinistros ocorridos por condutores na faixa etária dos 18 aos 25 anos.

Oportuno observar, ainda, que cabe à seguradora averiguar as informações repassadas pelo segurado, não sendo possível, como já ressaltado, alegar a quebra de perfil como fundamento para a negativa do seguro.

Dessa forma, se a seguradora não envida esforços no sentido de conferir as informações prestadas pelo segurado, deve ela assumir os riscos decorrentes do contrato, cabendo, inclusive, arcar com o pagamento da quantia relativa à cobertura contratada.

Neste ponto, ressaltam-se os ensinamentos de Sérgio Cavalieri Filho:

Lembro, entretanto, que a boa-fé é presumida. E, onde há presunção juris tantum, há inversão do ônus da prova, de sorte que caberá ao segurador a prova da má-fé do segurado, para eximir-se do pagamento da indenização. Lembro, também, que por se tratar de contrato de adesão, a sua interpretação deve ser a que favoreça o segurado: na dúvida, a favor do aderente, bastando à ignorância para a prova da boa-fé. (Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 424) (grifou-se)

Dessa forma, no exemplo acima, conquanto efetivamente conste exclusão de cobertura para condutores entre 18 e 25 anos, para a negativa securitária, deve-se ponderar a (i) existência de prova da má-fé do segurado e a (ii) habitualidade na condução do veículo por aquele terceiro. Na ausência de ambos elementos, conclui-se que o uso do veículo no momento do sinistro foi atípico, não sendo, desta forma, suficiente para a descaracterização do contrato de seguro.

Neste exemplo específico, cumpre ressaltar que o fato de um terceiro estar a conduzir o veículo no momento do sinistro, não afasta por si só a obrigação da seguradora de arcar com a indenização devida, uma vez que o contrato de seguro tem natureza intuito rei e não intuito personae, porquanto leva em conta o bem segurado e não a pessoa que o conduz.

Necessário observar, ainda, quanto ao ponto, que o fato de se indicar alguém como condutor principal não impede que terceiros eventualmente possam utilizar o bem, sob pena de a cláusula implicar restrição excessiva no uso do veículo, desnaturando, com isto, a própria natureza do seguro.

Portanto, só haverá de se falar em perda do direito ao seguro quando comprovada a má-fé do segurado, ou então o agravamento do risco.

Com efeito, a negativa de cobertura, pelo simples fato de o evento não estar em total harmonia com o que foi declarado pelo segurado no preenchimento de seu perfil, deve ser avaliada com cuidado pelas seguradoras, sob o risco de, além da indenização pelo sinistro, serem condenadas ao pagamento de indenização por outros danos, tanto morais como materiais, em eventual processo judicial.

E os corretores, ao intermediarem a contratação de seguros, devem prestar tais serviços de forma diligente, agindo com total transparência e prudência, sob pena de responderem solidariamente com as seguradoras pelos danos que derem causa.

*Advogada. Pós-graduanda em Direito Processo Civil pela Escola Superior da Magistratura Federal. Sócia da Bianchi Advocacia.


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